(De meu livro, Postilas de Direito Cambial, a ser publicado brevemente)
Dispõe o art. 1.647, III, do Código Civil que a pessoa casada não pode prestar fiança ou aval sem autorização de seu consorte, salvo se o regime de bens adotado for o de separação absoluta, sendo anulável o ato praticado com preterição dessa formalidade (art. 1.649).
A anuência, quanto ao aval, pode constar do próprio título ou de instrumento separado. Sob o primeiro aspecto, a situação jurídica do cônjuge anuente é análoga à de quem assina como procurador, ou à de quem firma a obrigação como assistente do menor relativamente incapaz. Tanto o procurador, como o assistente, declarando que o fazem nessa qualidade, não assumem obrigação cambiária pessoal.
Assim, ao contrário do que afirmam RACHEL STAJN e HAROLDO VERÇOSA, nem toda assinatura na cambial implica, nos seus efeitos, obrigação cambiária do signatário.
STAJN e VERÇOSA (“A Disciplina do Aval no Código Civil”, RDM 128, 2002).
Grifamos a expressão obrigação cambiária, porque o aval dado por um dos cônjuges pode ter reflexo no patrimônio do outro, em caso de execução judicial da obrigação, mas esta repercussão é extracambiária.
Como declarações cambiárias sem obrigação subsequente para o signatário, podem ainda mencionar-se a quitação firmada no título pelo portador e a anotação, firmada no título, das comunicações obrigatórias de que trata o art. 45 da Lei Uniforme sobre letra de câmbio de nota promissória (LU).
Sob o segundo aspecto, o consentimento expresso por instrumento separado é análogo ao da procuração conferida ao endossante por instrumento separado. Consoante o que foi dito em nota ao art. 16 LU, a doutrina dominante, no interesse da circulação simplificada do crédito, é no sentido da desnecessidade da verificação dos poderes do endossante que assina em nome de outrem e da desnecessidade de constituição de mandato no próprio título.
Como a exigência de outorga uxória ou marital diz respeito à forma da obrigação, incide a norma do art. 3º da Convenção sobre Conflito de Leis em matéria de letra de câmbio e nota promissória (CCL), concluída em Genebra em 1930, segundo a qual a forma da obrigação cambiária é regulada pela lei do país em cujo território tenha sido contraída (locus regit actum).
Essa regra de Direito interespacial deve ser entendida como referente à forma extrínseca, não à forma intrínseca da obrigação cambiária, que é regulada pela LU.
A Lei Saraiva (Decreto 2.044, de 1908) é precisa, ao dispor (art. 47):
“A substância, os efeitos, a forma extrínseca e os meios de prova da obrigação cambial são regulados pela lei do lugar onde a obrigação foi firmada” (grifamos).
O descumprimento da formalidade da outorga de consentimento não é oponível ao terceiro de boa-fé, pois não seria razoável exigir do terceiro indagação sobre o estado civil do avalista, tampouco sobre o regime de bens a que está sujeito. A suposta exigência seria contrária ao princípio da literalidade.
Essa conclusão se harmoniza com o Enunciado 114, aprovado na Primeira Jornada de Direito Civil, promovida em 2002 pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, assim redigido:
“O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu.”
Resumindo, a exigência da Lei brasileira, quanto à obrigação contraída pelo avalista no território nacional, deve considerar-se válida não só no plano interno, mas também à luz do Direito das Gentes, data venia dos dois ilustres mestres paulistas, que opinam por sua invalidade em face da Lei Uniforme de Genebra.
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