sábado, 30 de abril de 2011

O que é uma definição?

Conceito e definição. Entre conceito e definição, a diferença é de grau. A definição pode ser considerada como um conceito desenvolvido, e conceito, uma definição condensada.
             L. LIARD (Lógica, trad., 1963, p. 25).




Definição nominal e real


“As palavras disse Humpty Dumpty significam     exatamente o que eu quero; o importante é saber quem manda” (LEWIS CAROLL, Através do Espelho).

A patuscada de Humpty Dumpty, o simpático e rechonchudo personagem do folclore britânico, defrontado por Alice numa de suas aventuras, vem de molde a ilustrar o significado de definição.
Os escolásticos distinguiam cuidadosamente a definição nominal (definitio quid nominis), i.e. a acepção em que o termo é tomado, da definição real (definitio quid rei), concernente à natureza do objeto definido, uma distinção que provém de ARISTÓTELES.
ANDRÉ LALANDE (Vocabulaire Tecnhique et Critique de la Philosophie, 1985, verbete Définition).
Essa dicotomia foi de certo modo mantida na Lógica de Port-Royal, que, publicada anonimamente em meados do século XVII, foi o livro básico de introdução à Lógica até o século XIX e representa o que no século XX se convencionou chamar Lógica tradicional.
O desenvolvimento da Lógica, desde a Idade Média, não se fez de maneira linear. Embora reagindo, sob a influência de DESCARTES e PASCAL, contra algumas concepções metafísicas da tradição escolástica, a Lógica de Port-Royal retomou a antiga divisão entre definição nominal e definição real, a primeira destinada a fixar o significado convencional de um termo, e a segunda, a enunciar os atributos essenciais de um conceito. Não obstante certa falta de clareza quanto ao alcance de definição nominal nessa obra, seus intérpretes praticamente adotaram a mesma distinção estabelecida pelos escolásticos entre definição nominal e definição real.
Cf. LALANDE (op. cit., ibidem); ROBERT BLANCHÉ (História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell, trad., 1985, p. 187); WILLIAM KNEALE e MARTHA KNEALE (O Desenvolvimento da Lógica, trad., 1991, p. 321).
A confusão de fronteiras entre as duas regiões a do nominal e a do real tem sido responsável, em grande medida, por discussões terminológicas nos diversos ramos do saber, et pour cause, na Ciência do Direito, fazendo lembrar a “babel epistemológica”, de que falava A. L. MACHADO NETO.
MACHADO NETO (Compêndio de Introdução à Ciência do Direito, 1975, p. 49).
O legislador, porque manda, cria a fictio juris, presente em várias partes do Direito, inclusive no Direito Penal, como, por exemplo, a presunção de que todos conhecem a lei. O legislador, como corre mundo e se espalha fama, faz do preto, branco.

Definição incompleta


Os escolásticos reputavam perfeita a definição pelo gênero próximo e diferença específica. Seja, por exemplo, a definição aristotélica de homem: “Homem é um animal racional.” Animal é o gênero próximo; racional, a diferença específica.
A antiga definição de homem, que hoje não é aceita pela maioria dos biólogos, serve para ilustrar a relatividade das definições. Fora parte as ciências axiomáticas (Lógica e Matemática), o mais das vezes é suficiente, para efeitos práticos, uma definição aproximada. Numa primeira aproximação, dão-se as notas principais do objeto a definir. Por aproximações sucessivas, obtém-se um quadro mais ou menos completo do que se tem em vista.
Não devemos ter a ilusão de que toda definição precisa ser completa, nem renunciar a toda definição, ante a dificuldade no definir. A primeira atitude tem um efeito paralisante. Serve de antídoto saber que nem tudo é definível e que mesmo uma definição incompleta pode ser fecunda. A segunda atitude peca por falta de coragem. O velho brocardo omnis definitio periculosa est, que se encontra no Digesto, aplica-se ao legislador, não ao jurista.
O valor de uma definição se mede por sua fecundidade. Por exemplo, a definição de título de crédito, formulada por VIVANTE, é rica em consequências, embora considerada incompleta por parte da doutrina.
Uma vez que reconheçamos as limitações epistemológicas da definição, veremos que esse deslocamento teórico possui um poder surpreendentemente libertador, permitindo-nos progredir na aquisição metódica do conhecimento e na exposição logicamente ordenada das ideias.

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Usura, ou a filha do Diabo

O Diabo tinha uma filha, chamada Usura, para qual procurava casamento. Mas não havia homem de bem que a quisesse, sem embargo de trazer consigo mesma grosso cabedal em dinheiro amoedado. Disse então: "Já sei o que hei de fazer." Mudou-lhe o nome, e à Usura chamou Lucro Cessante. Já acorrem candidatos à porfia.

Esse conto de Manuel Bernardes (Nova Floresta, 1727, vol. V, título III), aqui parafraseado, ilustra o artifício empregado pelos mercadores medievais para contornar a probição da usura, como então se denominava o juro contratual, condenado pelo Direito Canônico.

Em meu livro Postilas de Direito Cambial, que será publicado brevemente, o apólogo tem a seguinte continuação, que não é de Bernardes: "Casaram Lucro Cessante e o Capital. Celebraram-se as bodas. Festejaram o Diabo e a mulher do Diabo. Festejou a diabada. Com o vantajoso casamento, multiplicou-se o Capital. Sob a capa de lucro cessante, juros simples e compostos passaram a ser cobrados despudoradamente."

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Origem e evolução da letra de câmbio

(De meu livro, Postilas de Direito Cambial, a ser publicado brevemente. Abreviações: LC = letra de câmbio; NP = nota promissória.)

1. Os três períodos. Costuma-se distinguir três períodos na história da LC: o italiano, o francês e o alemão. O primeiro vai da Idade Média ao século XVII; o segundo, dessa época até meados do século XIX; e o último, de 1848 até nossos dias.

2. Período italiano. Caracteriza-se este período pelo nascimento da LC, então sob a forma de carta (< Lat. littera = letra, carta, epístola), pela qual o remetente (sacador), com base em depósito monetário recebido, incumbia seu correspondente (sacado), noutra praça, de pagar, à pessoa designada (beneficiário), o equivalente em outra moeda.

Era então a letra instrumento do contrato de câmbio (< Lat. cambium = câmbio, troca, permuta); daí o nome letra de câmbio. A distantia loci justificava um ágio sobre o preço do câmbio, em face do risco representado pelo transporte da moeda, numa época em que as viagens, por terra ou por mar, eram inseguras.

Os mercadores florentinos, venezianos, genoveses, mais inclinados a cartagineses do que a romanos, praticavam a operação à larga, naturalmente com ágio.

A título de lucro cessante, contornava-se a proibição da usura, como então se denominava a estipulação do juro contratual, condenado pelo Direito Canônico, o que traz à lembrança o seguinte apólogo, narrado por MANUEL BERNARDES, que aqui parafraseamos, com o intuito de amenizar a aridez do tema.

O Diabo tinha uma filha, chamada Usura, para a qual procurava casamento. Mas não havia homem de bem que a quisesse, sem embargo de trazer consigo mesma grosso cabedal em dinheiro amoedado. Disse então: “Já sei o que hei de fazer.” Mudou-lhe o nome, e à Usura chamou Lucro Cessante. Já acorrem pretendentes à porfia (até aqui, conforme BERNARDES).

BERNARDES (Nova Floresta, 1727, vol. V, Título III, p. 375).

Casaram Lucro Cessante e o Capital. Celebraram-se as bodas. Festejaram o Diabo e a mulher do Diabo. Festejou a diabada. Com o vantajoso casamento, multiplicou-se o Capital. Sob a capa de lucro cessante, juros simples e compostos passaram a ser cobrados despudoradamente.

Ainda no período italiano, paulatinamente se vai acrescentando à letra o endosso, o aceite e o aval. Com o aval, o aceite e o endosso, a letra ganha maior liquidez e mobilidade.

Pelo endosso, o beneficiário transfere a cambial a terceiro, assinando-a no verso (< Lat. in dorso = no dorso). Obtendo o aceite do destinatário (sacado), assegura-se o sacador ou o beneficiário de estar aquele disposto a pagar, podendo então mais facilmente negociar o título. E, com o aval, aumentam as garantias de pagamento da letra.

Enquanto a LC prosperava, sua prima pobre, a NP, vegetava. Sendo o juro proibido pelo Direito Canônico, por ser considerado um rendimento “ocioso”, poucos estariam dispostos a emprestar dinheiro de graça. O mútuo usurário, como então se chamava o mútuo frugífero, era confinado ao mercado negro, operado pelos argentários.

Com a Reforma, cai ou simplesmente se ignora o veto religioso ao juro contratual, uma das molas do nascente capitalismo, em especial nos Estados protestantes. Com a laicização do juro, cai também a lei do justo preço, estabelecida no Direito Canônico, a par da interdição da usura, como limites morais ao consenso.

Já florescem as companhias, já proliferam as ações, as debêntures, as notas promissórias. Longe de condenar a busca do lucro e a acumulação de riqueza, consideradas mesmo por LUTERO como “obra do demônio”, os calvinistas veem na prosperidade terrena o “sinal da salvação”.

3. Período francês. A Ordenança de Comércio de Luís XIV, o Código de Colbert (1673), reconhece expressamente a função translativa e a função de garantia do endosso, admitindo o reendosso, como registra ALBERTO ASQUINI.

ASQUINI (Titoli di Credito, 1966, n. 68).

Pela primeira função, o endosso transfere a propriedade do título; pela segunda, garante aos portadores subsequentes o pagamento da letra, caso o sacado não honre a letra no vencimento, podendo então o portador voltar-se contra os endossantes anteriores e o sacador (direito de regresso).

A letra deixa de ser apenas um instrumento do contrato de câmbio. A causa de sua emissão pode ser o fornecimento de mercadorias ao sacado, em vez de dinheiro. É expressamente consagrada a regra da inoponibilidade das exceções e, com ela, a autonomia do direito adquirido com o título, como assinala JOÃO EUNÁPIO BORGES.

EUNÁPIO BORGES (Títulos de Crédito, 1971, p. 41).

Entretanto, era o sacador obrigado a ter provisão em poder do sacado, à semelhança do cheque, decorrente de mercadoria vendida, dinheiro emprestado ou outra fonte, assim como a declarar, na letra, o valor recebido, do beneficiário ou tomador, em consideração do qual o sacador lhe entregava o título.

O Code de Commerce de 1807 manteve tais exigências. Visava o sistema francês a proteger o sacado contra o saque de letra “sem lastro”, que, embora não lhe acarretasse nenhuma obrigação cambial, poderia comprometer-lhe o crédito perante terceiros que confiaram na declaração do sacador.

Ainda hoje, no Direito francês, o sacador é obrigado a possuir provisão (crédito) junto ao sacado, ao tempo do vencimento, abolida, no entanto, a cláusula obrigatória de valor recebido.

4. Período alemão. Na Alemanha, a LC dissocia-se de sua causa inicial, tornando-se, em mãos de terceiro, título de direito abstrato, bastante por si mesmo, como também se liberta das amarras representadas pela provisão e pelo valor recebido, do Direito francês. A LCambial alemã de 1848 sanciona esses princípios.

Numa síntese feliz, resume JOSÉ MARIA WHITAKER o caminho percorrido pela LC, desde suas origens até a Idade Contemporânea:

“No primeiro período, a letra operava a circulação do dinheiro; no segundo, a circulação de valores; no terceiro, passou a constituir por si mesma um valor.”

WHITAKER (Letra de Câmbio, 1963, n. 5).

terça-feira, 26 de abril de 2011

Aval de pessoa casada

(De meu livro, Postilas de Direito Cambial, a ser publicado brevemente)

Dispõe o art. 1.647, III, do Código Civil que a pessoa casada não pode prestar fiança ou aval sem autorização de seu consorte, salvo se o regime de bens adotado for o de separação absoluta, sendo anulável o ato praticado com preterição dessa formalidade (art. 1.649).
A anuência, quanto ao aval, pode constar do próprio título ou de instrumento separado. Sob o primeiro aspecto, a situação jurídica do cônjuge anuente é análoga à de quem assina como procurador, ou à de quem firma a obrigação como assistente do menor relativamente incapaz. Tanto o procurador, como o assistente, declarando que o fazem nessa qualidade, não assumem obrigação cambiária pessoal.
Assim, ao contrário do que afirmam RACHEL STAJN e HAROLDO VERÇOSA, nem toda assinatura na cambial implica, nos seus efeitos, obrigação cambiária do signatário.
STAJN e VERÇOSA (“A Disciplina do Aval no Código Civil”, RDM 128, 2002).
Grifamos a expressão obrigação cambiária, porque o aval dado por um dos cônjuges pode ter reflexo no patrimônio do outro, em caso de execução judicial da obrigação, mas esta repercussão é extracambiária.
Sob o segundo aspecto, o consentimento expresso por instrumento separado é análogo ao da procuração conferida ao endossante por instrumento separado. Consoante o que foi dito em nota ao art. 16 LU, a doutrina dominante, no interesse da circulação simplificada do crédito, é no sentido da desnecessidade da verificação dos poderes do endossante que assina em nome de outrem e da desnecessidade de constituição de mandato no próprio título.
Como a exigência de outorga uxória ou marital diz respeito à forma da obrigação, incide a norma do art. 3º da Convenção sobre Conflito de Leis em matéria de letra de câmbio e nota promissória (CCL), concluída em Genebra em 1930, segundo a qual a forma da obrigação cambiária é regulada pela lei do país em cujo território tenha sido contraída (locus regit actum).
Essa regra de Direito interespacial deve ser entendida como referente à forma extrínseca, não à forma intrínseca da obrigação cambiária, que é regulada pela LU.
A Lei Saraiva (Decreto 2.044, de 1908) é precisa, ao dispor (art. 47):
“A substância, os efeitos, a forma extrínseca e os meios de prova da obrigação cambial são regulados pela lei do lugar onde a obrigação foi firmada” (grifamos).
O descumprimento da formalidade da outorga de consentimento não é oponível ao terceiro de boa-fé, pois não seria razoável exigir do terceiro indagação sobre o estado civil do avalista, tampouco sobre o regime de bens a que está sujeito. A suposta exigência seria contrária ao princípio da literalidade.
Essa conclusão se harmoniza com o Enunciado 114, aprovado na Primeira Jornada de Direito Civil, promovida em 2002 pelo Centro de Estudos Judiciários do Conselho da Justiça Federal, assim redigido:
“O aval não pode ser anulado por falta de vênia conjugal, de modo que o inciso III do art. 1.647 apenas caracteriza a inoponibilidade do título ao cônjuge que não assentiu.”
Resumindo, a exigência da Lei brasileira, quanto à obrigação contraída pelo avalista no território nacional, deve considerar-se válida não só no plano interno, mas também à luz do Direito das Gentes, data venia dos dois ilustres mestres paulistas, que opinam por sua invalidade em face da Lei Uniforme de Genebra.