(De meu livro, Postilas de Direito Cambial, a ser publicado brevemente. Abreviações: LC = letra de câmbio; NP = nota promissória.)
1. Os três períodos. Costuma-se distinguir três períodos na história da LC: o italiano, o francês e o alemão. O primeiro vai da Idade Média ao século XVII; o segundo, dessa época até meados do século XIX; e o último, de 1848 até nossos dias.
2. Período italiano. Caracteriza-se este período pelo
nascimento da LC, então sob a forma de
carta (< Lat.
littera = letra, carta, epístola), pela qual o remetente (
sacador), com base em depósito monetário recebido, incumbia seu correspondente (
sacado), noutra praça, de pagar, à pessoa designada (
beneficiário), o equivalente em outra moeda.
Era então a letra instrumento do
contrato de câmbio (< Lat.
cambium = câmbio, troca, permuta); daí o nome
letra de câmbio. A
distantia loci justificava um
ágio sobre o preço do câmbio, em face do
risco representado pelo transporte da moeda, numa época em que as viagens, por terra ou por mar, eram inseguras.
Os mercadores florentinos, venezianos, genoveses, mais inclinados a cartagineses do que a romanos, praticavam a operação à larga, naturalmente com ágio.
A título de
lucro cessante, contornava-se a proibição da
usura, como então se denominava a estipulação do juro contratual, condenado pelo Direito Canônico, o que traz à lembrança o seguinte apólogo, narrado por MANUEL BERNARDES, que aqui parafraseamos, com o intuito de amenizar a aridez do tema.
O Diabo tinha uma filha, chamada
Usura, para a qual procurava casamento. Mas não havia homem de bem que a quisesse, sem embargo de trazer consigo mesma grosso cabedal em dinheiro amoedado. Disse então: “Já sei o que hei de fazer.” Mudou-lhe o nome, e à Usura chamou
Lucro Cessante. Já acorrem pretendentes à porfia (até aqui, conforme BERNARDES).
BERNARDES (Nova Floresta, 1727, vol. V, Título III, p. 375).
Casaram
Lucro Cessante e o
Capital. Celebraram-se as bodas. Festejaram o Diabo e a mulher do Diabo. Festejou a diabada. Com o vantajoso casamento, multiplicou-se o
Capital. Sob a capa de
lucro cessante, juros simples e compostos passaram a ser cobrados despudoradamente.
Ainda no período italiano, paulatinamente se vai acrescentando à letra o
endosso, o
aceite e o
aval. Com o aval, o aceite e o endosso, a letra ganha maior liquidez e mobilidade.
Pelo
endosso, o beneficiário transfere a cambial a terceiro, assinando-a no verso (< Lat.
in dorso = no dorso). Obtendo o aceite do destinatário (
sacado), assegura-se o sacador ou o beneficiário de estar aquele disposto a pagar, podendo então mais facilmente negociar o título. E, com o
aval, aumentam as garantias de pagamento da letra.
Enquanto a LC prosperava, sua prima pobre, a NP, vegetava. Sendo o juro proibido pelo Direito Canônico, por ser considerado um rendimento “ocioso”, poucos estariam dispostos a emprestar dinheiro de graça. O mútuo usurário, como então se chamava o mútuo frugífero, era confinado ao mercado negro, operado pelos argentários.
Com a Reforma, cai ou simplesmente se ignora o veto religioso ao juro contratual, uma das molas do nascente capitalismo, em especial nos Estados protestantes. Com a laicização do juro, cai também a lei do
justo preço, estabelecida no Direito Canônico, a par da interdição da usura, como limites morais ao consenso.
Já florescem as companhias, já proliferam as ações, as debêntures, as notas promissórias. Longe de condenar a busca do lucro e a acumulação de riqueza, consideradas mesmo por LUTERO como “obra do demônio”, os calvinistas veem na prosperidade terrena o “sinal da salvação”.
3. Período francês. A Ordenança de Comércio de Luís XIV, o Código de Colbert (1673), reconhece expressamente a
função translativa e a
função de garantia do endosso, admitindo o reendosso, como registra ALBERTO ASQUINI.
ASQUINI (Titoli di Credito, 1966, n. 68).
Pela primeira função, o endosso transfere a propriedade do título; pela segunda, garante aos portadores subsequentes o pagamento da letra, caso o sacado não honre a letra no vencimento, podendo então o portador voltar-se contra os endossantes anteriores e o sacador (
direito de regresso).
A letra deixa de ser apenas um instrumento do contrato de câmbio. A causa de sua emissão pode ser o fornecimento de mercadorias ao sacado, em vez de dinheiro. É expressamente consagrada a regra da inoponibilidade das exceções e, com ela, a autonomia do direito adquirido com o título, como assinala JOÃO EUNÁPIO BORGES.
EUNÁPIO BORGES (Títulos de Crédito, 1971, p. 41).
Entretanto, era o sacador obrigado a ter
provisão em poder do sacado, à semelhança do cheque, decorrente de mercadoria vendida, dinheiro emprestado ou outra fonte, assim como a declarar, na letra, o
valor recebido, do beneficiário ou tomador, em consideração do qual o sacador lhe entregava o título.
O Code de Commerce de 1807 manteve tais exigências. Visava o sistema francês a proteger o sacado contra o saque de letra “sem lastro”, que, embora não lhe acarretasse nenhuma obrigação cambial, poderia comprometer-lhe o crédito perante terceiros que confiaram na declaração do sacador.
Ainda hoje, no Direito francês, o sacador é obrigado a possuir
provisão (crédito) junto ao sacado, ao tempo do vencimento, abolida, no entanto, a cláusula obrigatória de
valor recebido.
4. Período alemão. Na Alemanha, a LC dissocia-se de sua causa inicial, tornando-se, em mãos de terceiro, título de direito abstrato, bastante por si mesmo, como também se liberta das amarras representadas pela provisão e pelo valor recebido, do Direito francês. A LCambial alemã de 1848 sanciona esses princípios.
Numa síntese feliz, resume JOSÉ MARIA WHITAKER o caminho percorrido pela LC, desde suas origens até a Idade Contemporânea:
“No primeiro período, a letra operava a circulação do dinheiro; no segundo, a circulação de valores; no terceiro, passou a constituir por si mesma um valor.”
WHITAKER (Letra de Câmbio, 1963, n. 5).